A democracia é uma invenção o Oriente
Lisbon, 27 October 2006 _ Isabel Lucas
Download the scan image of this article: here
Original link: here
Era uma das intervenções mais aguardadas dos três dias de conferência na Gulbenkian. Será a democracia um ideal universal? John Kean reconhece a rasteira da interrogação e vai respondendo com os novos desafios que se colocam aos defensores deste sistema político. Que abram os olhos à mudança, avisa, alertando ainda para as ameaças: terrorismo, guerra, império, tráfico de armas, exclusão social.
Quando poderemos ler a sua história da democracia?
Este livro tem sido a minha amante há seis anos. Acabo-o no próximo ano e será publicado na Primavera de 2008 em Inglaterra e nos EUA. Irá coincidir com as eleições legislativas e presidenciais, respectivamente. É um livro muito extenso.
Quantas páginas?
800 páginas, com muitas fotografias. É uma sinopse para o público em geral e não só para académicos. Tentei escrevê-la com personagens, acção e enorme atenção à ironia.
Temos de rir da democracia?
Claro. Tem tanto de absurdo…
Por exemplo?
Se olhar para as instituições básicas da democracia, nenhuma foi criada em nome da democracia. Um dos meus absurdos preferidos é o voto secreto. É uma invenção australiana. Até 1850, todas as eleições na América, Europa e Austrália eram abertas e se eu queria ser candidato tentava persuadir alguém a votar dando álcool ou comida, dinheiro, ou ameaçando. Os arquitectos do voto secreto eram protestantes e não gostavam do alcoolismo. Pensavam que se houvesse um método de tornar privado o voto ninguém saberia em quem se votava, o que cortaria a relação entre álcool (suborno) e voto. Mais: imaginavam que o acto de estar sozinho com a sua consciência num lugar privado com um pedaço de papel era um pouco como rezar, estar diante de Deus, com a sua consciência.
É a primeira história da democracia escrita em cem anos.
A última foi escrita por um americano, Nahum Capen, depois da Guerra Civil Americana e do que consideravam ser uma vitória da democracia americana contra a escravatura. Ele tinha a ideia de que a democracia era uma dádiva de Deus e que essa dádiva tinha a sua melhor concretização nos EUA.
Que revelações traz este seu livro?
Haverá muitas surpresas e algumas coisas chocantes. Por exemplo, a história que se vende é a de que a democracia nasceu em Atenas. Não é verdade. A democracia é uma invenção do Oriente e nunca do Ocidente. Isto pode ser muito surpreendente, mas será uma tese bem documentada.
Divide a história da democracia em três fases. Como define a actual?
Chamo-lhe democracia complexa, mas pode ser chamada “democracia representativa de proximidade”. O primeiro indício da mudança é a democracia indiana, uma nova democracia complexa que sobrevive e marca a Índia como modelo. Acontece num contexto multirreligioso, multilinguístico, ou noutras palavras, onde as fundações sociais do poder não são homogéneas. O multiculturalismo é o centro desta democracia. Esta nova forma engloba multiculturalismo e o respeito e tolerância por diferentes identidades. Estamos a assistir ao declínio da ideia de um povo homogéneo. Isso é ficção e má ficção que mostra os abusos da história da democracia. Nesta nova fase há um enfraquecer da ideia de um povo igual com todo o poder e legitimidade.
A democracia é um ideal universal?
É uma questão espinhosa. À partida diria que é universal. Porquê? Porque na China, em Singapura, na Indonésia, Uruguai, Brasil, África do Sul, Nigéria, na União Europeia, nos EUA, toda a gente fala de democracia, todos são democratas. Há algo de estranho neste consenso e mais estranho ainda é que ninguém faça a pergunta: porque é que a democracia é tão boa?
Tem uma resposta?
Todas as justificações da democracia supõem que há um Primeiro Princípio que é absolutamente verdade: Deus, História, Utilidade, Nação. Isso é antidemocrático. Devemos democratizar o ideal de democracia, torná-la mais humilde. A democracia não é um Primeiro Princípio, é antes a condição da possibilidade, uma liberdade contra primeiros princípios e arrogâncias. É uma maneira de pensar, uma maneira de ser, com uma série de instituições e linguagem que garanta pluralismo de valores e modos de vida. A democracia devia ser a campeã da humildade.
Quando intitula o livro Life and Death… pressupõe que há ameaças.
Entre as maiores está a “guerra” e o “império”. Uma das grandes questões é o comportamento dos EUA.
Representa uma ameaça?
Potencialmente. É o primeiro império global, opera nos quatro cantos do mundo, tem bases militares em mais de cem países, capacidade de estar em várias guerras em simultâneo, controla parte da indústria de telecomunicações e por aí fora e faz o que faz em nome da democracia. Muita gente não gosta de democracia por confundir democracia com o estilo americano de governar. A questão para mim é a de como o império americano pode ser democratizado. É bom que os defensores da democracia acordem para o que é novo e inventem o potencial da democracia, com uma representatividade mais complexa, comprometida com a prevenção da alienação, da estupidez, da fome. Para muitas destas ameaças não temos solução.
Em conclusão, é pessimista em relação ao futuro da democracia.
Não sei se consegue traduzir isto, mas sou um “possumista”. Vem do latim possum , que significa ‘eu posso’. Tendo em conta a longa história da democracia, ser optimista é ser tonto.